segunda-feira, 5 de abril de 2021

Jão da Silva e o ingresso na Faculdade | CRÔNICA

Jão da Silva é um jovem brasileiro que deseja mudar de vida. Estudou em escola pública, mas sempre foi dedicado. Não era daqueles que olhava para as escolas dos ricos e pensava que só estes seriam alguém na vida – até porque não precisa ter diploma para ser alguém. Jão se esforçava, estudava com bastante afinco.

O interessante é que Jão da Silva não era o único estudioso. Ele tinha um grupo de amigos que marcavam de se encontrar, não para jogar videogame nem para beber e/ou fazer algo ilícito, mas para estudar. Certa feita, o estudo foi interrompido por uma indagação. Jão da Silva perguntou que curso eles tentariam ingressar após o ENEM.

Ninguém sabia, mas Jão da Silva tinha o sonho de ser professor. Não se decidira se faria Pedagogia para lecionar para os pequenos ou se seria letrista para dar aula de Língua Portuguesa – que ele amava solenemente – até o Ensino Médio. 

Quando os amigos falaram seus desejos, Jão da Silva arregalou os olhos surpreso ao escutar:

- Medicina! – disse um;

- Medicina! É lógico! – afirmou outro;

- Medicina! Mas não aqui! Vou tentar no exterior;

- Vou estudar para algum concurso público federal – disse o último – para depois, estabilizado, tentar fazer medicina!

Então todos perguntaram para Jão da Silva o que ele iria fazer.

- Medicina, é claro!

Jão da Silva não queria ser médico. Mas foi claramente influenciado. Chegando em casa, foi logo pesquisar sobre a profissão de professor. Viu notícias sobre a falta de valorização salarial e humana, casos de professores sendo agredidos, se licenciado com pânico e tudo mais. E mesmo tendo um talento nato para lecionar e um amor peculiar pela Língua Portuguesa, enterrou seu talento para ir à Faculdade de Medicina.

Jão da Silva conseguiu uma bolsa para cursar medicina. O orgulho da família! Todos disseram o famoso “sempre acreditei em você”. Jão da Silva começou o curso animado, tinha a oportunidade de mudar a vida da família sendo médico. 

Mas em um belo dia Jão da Silva teve que interromper o curso por causa de uma cirurgia. Não, ele não tinha nenhuma doença. É que Jão da Silva escolheu cursar medicina, mas havia esquecido que não podia ver sangue que desmaiava.

Autor: Professor Anderson Carlos Bezerra

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Sermão da vida | O homem que tinha coisas #8


Da pomposa vida, à ruína total. Eis como encontra-se Richard nesse momento. A chaga viva vai perambulando pela noite. Richard anda com uma camisa rasgada, suja, uma calça jeans com fiapos, uma sandália, e porta um cachimbo artesanal feito de latinha. Estava a iniciar sua vida, ou sua morte, no uso do crack. É bem verdade que desde a época pomposa já era viciado no álcool, cocaína, por exemplo. Mas perdeu o controle de tudo. Ele perdeu tudo.

Ele anda pela rua, seu odor repele as pessoas. Ele que outrora causava admiração, hoje causa medo. Todos acham que é um assaltante. Todos tratam-lhe como um lixo. Ele é agora mais um entre milhões, escondidos, esquecidos, rejeitados. Mais um que tem uma história. Mas Richard, neste caso, tem uma história. Todos tem. Mas a história de Richard é que ele quis ter coisas.

Ele começa a andar pela cidade, dá voltas sem direção, e eis que surge uma figura espantosa para Richard. Seus olhos que costumavam ficar vermelhos por causa do uso da droga, enchem-se de lágrimas. O que terá causado tanto espanto a Richard? Minha nossa! Richard está diante de seu passado. Há cerca de 25 metros de Richard encontra-se Chiara, a garota da escola que manifestara afeto por ele e deu-lhe conselhos. Estava Chiara bem-vestida, com quatro crianças ao seu redor, uma menina de 6, e três meninos de 5, 3 e 2 anos respectivamente; e com a mão dada a um homem boma pinta, bem-vestido. Ambos davam um belo sorriso, mostrando sua felicidade. Ele que outrora questionava sobre a felicidade, vê agora uma família com a felicidade estampada. A Chiara, menina sem graça para ele, agora mostra toda a graça de um casamento. Ele percebe que não são ricos, pois o local – esqueci-me de contar – era uma parada de ônibus. Parece lhe vim um clarão na alma. O que fiz da vida? – questiona-se Richard. Eu tive tudo, ela nada, mas agora vejo, no entanto, que não tenho nada, e ela tem tudo.

Richard, parado, correndo lágrimas nos olhos, um sentimento no coração, uma mistura de libertação com remorso se apoderava dele. Inevitável foi o cruzamento de olhares. Richard e Chiara cruzaram os olhares. Chiara olha, assusta-se, abraça o marido, que também olha para Richard com olhar desconfiado. Ela coloca a mão na boca, espantada. Corre-lhe uma lágrima. Parece não acreditar que aquele é o seu amigo de infância.

-Richard!? - exclamou Chiara.

Mas Richard sai correndo, chorando, tropicando. Cai no chão, rala-se. Levanta. Corre. Esconde-se num beco. E está ali novamente: ele, seu cachimbo, sua droga, e seu passado. E o futuro? Richard só pensa no passado.

Olha adiante, vê uma Igreja. Nossa Senhora das Misericórdias, chama-se a Igreja. Richard olha aquela imagem da Pietá, chora, e questiona-se: haverá misericórdia para um verme como eu?

***

Passado algum tempo, Richard estava morto. Acabou-se. É encontrado morto. “Mais um morador de rua morre. Tirem-no daqui!” - gritou o dono de uma loja que ficava próximo ao beco.

Chiara o reconhece. Chora. Mas, como amiga, cuida dos preparativos do sepultamento do amigo de escola.

Ao procurar o Padre, qual surpresa. O Padre, Antonio, conhecia tanto Chiara, como Richard. Tinham estudado juntos. Ficou boquiaberto. Decidiu fazer mais que o velório. Richard queria coisas, mas ganhou algo que, não compreendeu antes, mas agora terá, uma Santa Missa por ele. Ele teria uma Missa de corpo presente.

Tudo arrumado: corpo devidamente arrumado, no caixão. Colocado na Igreja. O padre se paramenta. A Igreja, por se tratar de domingo, estava lotada. Sim, é estranho uma Missa de corpo presente no domingo no horário comum dos fiéis, mas o sacerdote assim quis. Paramentado, coroinhas prontos. Segue o rito. Pede-se perdão dos pecados... Uma velhinha olha pro caixão e berra. Uma criança corre, esbarra no caixão... e o falatório com o caso. Outro vai ver o morto e grita traumatizado. Mas em meio ao desconforto, Padre Antonio vai proclamar o Evangelho.

Padre: Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo São Mateus
Povo: Glória a Vós, Senhor!
Padre: Naquele tempo Jesus disse aos seus discípulos: “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e a traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam. Ajuntai para vós tesouros no céu, onde não os consomem nem as traças nem a ferrugem, e os ladrões não furtam nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, lá também está o teu coração. O olho é a luz do corpo. Se teu olho é são, todo o teu corpo será iluminado. Se teu olho estiver em mau estado, todo o teu corpo estará nas trevas. Se a luz que está em ti são trevas, quão espessas deverão ser as trevas!”. Palavra da Salvação!
Povo: Glória a Vós Senhor!

Padre Antonio pega aquele microfone, dá alguns passos. Tem a face resplandecente. Alguma coisa diz que não será um sermão qualquer. Parece estar tomado de uma força maior. Reza uma Ave Maria. Abre, então, a boca e parece um Leão. Parece a voz de Deus a bradar ao povo. Eis o sermão trovejante de Padre Antonio naquela Missa de corpo presente:

Amados filhos e filhas da Santa Igreja Católica, graça e paz! Quero hoje falar-vos a verdade para a vossa salvação. Em outro trecho do Evangelho, que não este que lemos hoje, Jesus vai falar: do que adianta o homem conquistar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? Oh, sim, amados filhos! De que adianta? O que temos aqui hoje na Igreja? Um velório? Um corpo? Mas e a alma? Onde estará a alma deste infeliz? Conheço-o. Estudamos juntos. E diante da sua vida, pergunto, ó Deus, onde estará a alma deste homem? Conquistou tantas coisas na vida. Em vida mesmo perdeu todas. Mas terá perdido também sua alma? Ó, vós que me escutais, quanto tempo tens vós para vos converterdes? Este infeliz não sabia o dia nem a hora. Não sabemos se se arrependeu ou não. Mas e vós, que vindes a Missa como mero preceito, que queres viver nos prazeres, nas orgias, na conquista de bens, colocando a felicidade nas coisas – como fizera hoje que está no caixão -, e vós, não vos arrependereis de vossa má conduta? Até quando ides brincar com a vossa salvação? Hoje está Richard, amanhã estará você! Você tem garantias de que não? Entrega-te a Deus hoje. Não deixe para amanhã. Quando foi a última vez que você se confessou? Jesus disse aos Apóstolos: Aqueles a quem perdoardes os pecados eles lhe serão perdoados; aqueles a quem retiverdes, lhe serão retidos. Estou todos os dias aqui para atender confissões. Mas vós não vindes. Vós ides pro mundo, pras baladas. Vinde, as vezes, procurar apoios políticos, honras, alguma coisa. Mas e a vossa mudança de vida? Quereis o mesmo fim de Richard?

Ah, Richard. Meu amigo de escola. O que fizestes da vida? Por que não aproveitastes o tempo que Deus vos deu para mudar?

Sabe, meus filhos, eu iria fazer uma homilia comum dos velórios. Apesar de tudo, diria eu, foi uma boa pessoa. Mas, um fogo tomou conta de mim. Sabendo da vida de Richard, devo ser sacerdote e conduzir vós, filhos que Deus me confiou, ao bom caminhos. Ao ver o Evangelho de hoje, não poderia deixar de falar o que se deve falar. É providencial. É a vida de Richard aqui.

Nós vivíamos numa região pobre. Sim, é verdade. Mas tínhamos oportunidades a escolher. Richard, no entanto, embora tenha procurado ser honesto no início, passou a ser ambicioso. Trabalhava vendendo doces, depois cresceu o olho. Ele queria ajuntar tesouros aqui. Tudo começou com a praga de um celular. Depois desejava tudo: carros, mansões, mulheres... Ah, Richard entrou numa devassidão de vida. Aproveito que tem um caixão aqui presente, com o corpo de Richard, e lembro-vos do episódio da vida de Santo Antonio de Pádua. Certa vez chamaram o santo para o velório de um rapaz que havia falecido. Santo Antonio, em vez de falar coisas bonitas para a família, começou a pregar a conversão e, para espanto de todos, disse que o jovem havia se condenado. Ante o espanto, o santo disse para irem até o baú de tesouros do jovem e veriam a prova. De fato, foram até o baú de tesouros daquele jovem e, para espanto de todos, junto aos tesouros, estava o coração daquele jovem. Deus assim o permitiu para provar a veracidade das palavras do Evangelho: onde está o teu tesouro, aí está o teu coração. E o coração de Richard estava no dinheiro, nas bebidas, drogas, nas mulheres. Mulheres... e a mulher que cuidou dele, sua mãe. Onde está? Mãe de Richard, estás aí? Não, não está. Ela já faleceu. Eu era diácono quando aconteceu e acompanhei o velório. E Richard? Nem passou por perto. Não apareceu para um último adeus a mãe. Já vivia nas mansões, rico, torrando o dinheiro do super empresário que praticamente lhe adotara. Mas àquela que sofreu dores de parto e, dores de vida, para criá-lo com os irmãos, esta alimentou-se do desprezo de seu filho. Na doença, não visitou. Na morte, não estava junto. No velório, nem apareceu. Fazia anos que ele não mandava ajuda alguma para a mãe e a família. Ele nas mansões, a mãe nas “solidões”.

Passou a viver com as prostitutas. São Paulo fala, meus filhos, Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo? Tomarei, então, os membros de Cristo e os farei membros de uma prostituta? De modo algum! No entanto, Richard fez. Que infelicidade. Ali estava o coração de Richard: no dinheiro que quanto mais tinha mais queria ter, não se saciava. Tinha carro, mas queria mais. Pois seu coração no amor impuro das paixões mundanas. As mulheres eram a sua felicidade. E quantas e quantas vezes Richard uniu-se as prostitutas. Isso quando não fez pior. Estava tão cego buscando ter coisas nessa terra, que chegou ao ponto de fazer das pessoas coisas. Quantas moças ingênuas ele não enganou? Uma mulher não era, para ele, uma filha de Deus, que merece ser amada, respeitada, honrada. Uma mulher é tão sagrada que chega-se ao ponto de o homem ter ato quase que de culto – de dulia. Tamanha reverência deve-se ter. Tamanho temor de Deus. Pois a mulher é o santuário da vida. Mas Richard? Fez dessas mulheres seus objetos sexuais. Seus intrumentos de prazer. As mulheres para ele tornaram-se chilets que após mascados foram para a lixeira. Richard cometeu o horrível ato de ter abortado o próprio filho. Que infelicidade! Após fazer das mulheres seus objetos, seu próprio filho tornou-se uma coisa descartável. A mãe dessa criança morreu após depressão. E Richard? Se achando o tal. O rei das coisas. Ele foi um homem casado. Bem casado. Pelo menos, apesar de também ter usado sua mulher, enganado-a, feito dela uma coisa. Sim, era tudo ilusão, era de fachada. Mas ela era uma mulher virtuosa. Suportava tudo. É a viúva que chora lá atrás... (todos olham espantados, cochicham). Mas Richard fez suas escolhas. Sua felicidade não estava nos valores do Evangelho. Não era Cristo. Seu coração não estava em Jesus, mas no mundo e no que ele pode oferecer. Mas o diabo é assim, dá com uma mãe e, rapidamente, tira com a outra. Prometeu-lhe a felicidade, mas, em troca, só lhe veio amargura. São João da Cruz dizia que por prazeres temporários sofrem-se tormentos eternos. Foi temporário o prazer de Richard, e agora, será que está na glória ou nos tormentos? Richard teve seus prazeres, mas evaporaram. Já em vida pode experimentar a agonia do inferno. Pois só em Jesus Cristo temos a felicidade perfeita. Quantos de vós, aqueles que já encontraram Jesus, sabem que mesmo sendo pobres, em condições complicadas, muitas vezes sem fartura à mesa, mas tendo Jesus, vós sabeis que tendes forças para suportar a labuta do dia a dia, que tem ânimo, tem felicidade, pois sabem que nós não nascemos pra essa vida, a nossa pátria é o Céu. É lá onde vamos morar pelos séculos dos séculos. Amém? Amém Igreja? (todos dizem amém).

Mas vós podeis dizer: mas Deus podia ter enviado sinais. Ora, e não os enviou? Quantas vezes Deus se manifestara na vida dele como um mendigo dando-lhe respostas? Mas ele sempre quis alimentar os apetites da carne, e não os do espírito. Até na forma de uma criança de olhos azuis Deus manifestara-se na vida de Richard, mas ele não quis a Deus, quis a morte. Se ele se condenou, não foi por falta de esforço de Deus. Mas foi por sua própria recusa. Sempre que ele dava um passo a mais na vida de escravidão do pecado, Deus dava-lhe um sinal. Mas ele preferiu a felicidade passageira. Porque o seu coração estava no tesouro passageiro da terra. Não podeis servir a dois senhores. Ou sois de Cristo, ou do mundo. Escolhe, pois, hoje, a Cristo e sereis salvos.

Morreu, na miséria do pecado. Mas, Jesus diz para Santa Faustina, a Apóstola da Misericórdia, que até o último segundo da vida Ele estará tentando entrar no coração da pessoa para salvá-la. Nós não sabemos como morreu ele: estava em estado de graça? Arrependeu-se? Salvou-se ou condenou-se? Eu não sei. Mas olhai todos para este caixão: vede o fim do homem! Pra que buscar coisas? Sei que muitos de vós que me escutais hoje também são homens e mulheres que tem e que buscam coisas, que fazem as pessoas de coisas, objetos descartáveis, fontes de prazer. Olhe para este caixão: eis o fim do homem. Do pó viestes, para o pó voltarás! O que ele está levando? Nada. Para que seu orgulho? Pra que todo seu dinheiro? Pra que tantas roupas luxuosas? Pra que tantos sapatos? Pra que tantos carros? Pra que tantas casas? Pra que tanta coisa inútil, se não tens o essencial: Jesus Cristo. Você vai morrer e, se não perder tudo antes, como Richard, o que levará? Levará apenas a alma manchada pelo teu egoísmo, que não quis partilhar dos dons que Deus te deu. Tens muito dinheiro? Ora, não ajudavas nenhum pobre, porquê? Tens casas e casas? Nunca acolhestes um peregrino? Tens tudo, que Deus permitiu que tivesse, mas usa apenas para o bel prazer. EGOÍSTA! Vai levar o que? Aqui acabou o orgulho, a vaidade, a soberba do homem que tinha coisas. Não numa ferrari, mas num caixão de madeira. Como acabará a tua? Da mesma maneira. Jesus está hoje convidando-te para confessar os pecados. Busque um padre e confesse toda a tua vida podre. Deus pode e quer te perdoar. Ele disse para Santa Faustina que Sua Misericórdia é o Seu maior atributo e que, acredite, nossos pecados todos juntos comparados à Sua Misericórdia, é menor que uma gota compara com o mar. Tende confiança. Confesse tudo. Confesse teus pecados, das vezes que usou as pessoas, das vezes que teve relação sexual antes do casamento, os adultérios, a embriaguês, os roubos, corrupções, tudo. Deus perdoa tudo. Basta que quereis. Não, não deixeis pra depois. Talvez Richard tenha deixado pra depois, e eis que o que veio depois foi a morte. O tempo da graça, no entanto, é agora. Agora é a hora de mudar de vida. Se deres hoje um passo em direção a Deus, Ele dará sete em tua direção. Ou antes, pulará ao vosso pescoço, vos dará um beijo no rosto, e dirá: quanto eu esperei por ti, meu filho! Minha filha! Eu ansiava pela tua volta. Que bom que voltou. Nâo, não me fales do tempo em que eras homem ou mulher de coisas, vamos reescrever uma nova história de amor... Eis o que Deus vos fala hoje. Eis o que Deus também me fala.

Mas, antes de encerrar essa homilia e dar continuidade no Santo Sacrifício da Missa, onde consagrarei o Corpo e o Sangue do Senhor Jesus Cristo. Recordo-me agora de São Jerônimo que pregava o Evangelho numa região e uma mulher o importunava. Eis que ele declara para a mulher que ela morreria por ter zombado do Evangelho. Passado alguns dias ele vê uma movimentação numa casa, vai ver e, de fato, era aquela mesma mulher, por nome Catarina, que havia zombado do Evangelho, e agora estava morta. São Jerônimo, tomado pelo Espírito de Deus, disse: Catarina, onde está a tua alma!? Catarina, onde está a tua alma? Nada aconteceu. Porém, o santo tomado de poder de Deus, disse: Catarina, em nome de Jesus Cristo, responda-me! Onde está a tua alma? Imediatamente a jovem levantou-se, e, para espanto de todos, disse: minha alma está no inferno por ter zombado do Evangelho. Por isso, meus filhos, não zombem do Evangelho, mas procurem emendar de vida hoje. Parem de usar drogas. Parem de se prostituir. Deixem-se ser tocados pela Misericórdia de Deus que perdoa a todos.

Mas, sinto o mesmo fogo que queimou São Jerônimo. Não sabemos o estado que Richard morreu. Mas para confirmar essa pregação, se foi humana ou inspirada por Deus. Responda-me... (o Padre Antonio desce os degraus do presbitério, aproxima-se do caixão) Responda-me, Richard, responda-me, onde está a tua alma? Richard, onde está a tua alma? Richard, em nome de Jesus Cristo, pela intercessão de Maria Santíssima, onde está a tua alma?

AAAAAAAAH MISERICÓRDIA, SENHOR! - brada Richard. Levanta-se! Fica sentado. Não, não em um caixão, mas na cama de um hospital. O efeito da droga foi forte, Richard alucinou, teve overdose. Mas foi socorrido e levado para o hospital à tempo de salvar sua vida. Mas ao lado de Richard está Chiara; Mônica, sua esposa, junto com seus filhos.

R-Chi.. Chiara? Mônica? Crianças?
C- Sim, não se esforce. Eu te vi na parada de onibus e você saiu correndo. Fiquei te procurando. Logo avisei sua família. Eles estava há meses te procurando. Você havia fugido, se entregue as drogas, a destruição. Conhecia a história. Tomei a liberdade de procurar Mônica, tornamo-nos amigas, e trabalhamos na sua busca. Sem sucesso. Mas o destino – a providência divina, respondeu um dos filhos de Richard – sim, a providência divina, nos fez nos encontrar. Você passou mal, mas te trouxemos pra cá.

R – Mônica, eu...
M – Eu te perdoo.

Richard não conseguia falar mais nada, apenas chorar. Vocês também chorariam se vissem – mas imaginem – Mônica e os filhos abraçando-o amorosamente, como sua própria vida que havia se perdido e agora acharam. Todos em cima dele.

Richard aprendeu uma bela lição. A verdadeira felicidade está no Céu, não nas coisas passageiras da terra. E vejam como Deus foi bom com ele: mesmo ele casando-se por interesses, Deus permitiu que se casasse com uma mulher virtuosa, que o amou até na cruz, a exemplo de Jesus, e rezava incessantemente por ele. Quantos terços ela não rezou? Assim como a própria mãe de Richard.

Depois que recebeu alta do hospital, ele, por livre vontade, internou-se numa clínica de recuperação de dependentes químicos. Reconhecia sua doença e queria se curar, para não ser novamente um homem das coisas, nem uma coisa na mão do diabo, mas uma nova criatura em Cristo Jesus.

Mas, antes de internar-se na clínica ele manifestou desejo de ir a um Padre confessar seus pecados. Ele sabia que o sonho que tivera não foi apenas um sonho. Foi mais uma das grandes manifestações de Deus chamando-o a conversão. Será que teria outra oportunidade? Ele aceitou logo. Eis o tempo. Faça como ele.

Eis que vai até aquela Igreja, Nossa Senhora das Misericórdias. Queria lá, afinal, antes de passar mal (overdose) havia fixado olhar lá. Além do mais, tendo sua esposa rezado tantos terços, Maria Santíssima deve ter rogado por sua alma. Queria lá. E foi. Adentra, vai até o confessionário. Eis que lá está um jovem sacerdote que lhe diz: A paz esteja contigo, Richard, sou o Padre Antônio, quais são os teus pecados?

FIM

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Bem-vindo a ruína | O homem que tinha coisas #7


Após estes eventos pra lá de badalados, Richard tenta esquecer tudo. Vai levando a vida entre fingir boas relações na família e a curtição. Para tentar esquecer mais rápido o drástico episódio que lhe causara impressão até agora, ele vai passando a semana ingerindo mais álcool que o costume. E ele faz isso porque, apesar de ter o que queria, de usar e descartar a vontade, ele não se sente feliz. Ele quer mais.

Lembra-se dos pequenos momentos de prazer que tem. Seu ídolo é o Dr Artur, que é quase um pai para si agora, e tenta imitá-lo. Como ele conheceu aquele velho impuro? Num restaurante, esperando sua “mulher da semana” - ou do dia – após lhe faz tal anúncio. Decide-se, então, por uma vida dissoluta, semelhante a de seu mestre.

Por uma ânsia de felicidade, por um lado, e de busca da tal sonhada felicidade, por outro, Richard começa a frequentar casa de jogos. Ele não era tão bom jogador como era um bom vendedor nos tempos de outrora. Perdeu muito dinheiro. Ele fez a festa, mas a dos companheiros que ganharam um dinheiro fácil. Ria-se, ria de si... Mas ele queria recuperar o dinheiro. Joga daqui, bebe dali.

Assim viveu Richard durante vários dias. Sua relação com Mônica já começa a se abalar. Torna-se agressivo, trata mal. Mas agora é um mal estranho, antes era só a frieza. Agora chega bêbado, irado... Será que Mônica suspeita do abismo que seu marido adentrara? Pobre mulher que, a exemplo de Dona Clara, mãe de Richard, limpava-o e cuidava dele, embora recebesse agressões.

Em uma dessas saídas de Richard para a casa de jogos, chama-lhe atenção outra jovem. Ela chamava-se Hilary e era garota de programa. Na verdade ali também funcionava uma casa de prostituição. Ele bem sabia porque já frequentara. Mas eram de luxo. Alguns chamam de acompanhantes. Muitas mulheres se submetem a essa prostituição para homens ricos.

Lá vai Richard com sua mulher, não da semana, mas daquela noite. Mas algo lhe chama a atenção naquela mulher: uma tatuagem de punho fechado com os dizeres “as mulheres têm poder!” Richard logo lhe pergunta:

R -Quais são teus superpoderes?
H – O que disse?
R – Sua tatuagem... “As mulheres têm poder” - (e ria).
H – Homens! Sim, tenho poder. E o meu poder é ser mulher. As mulheres podem tudo!
R – Hum, deixe-me adivinhar... És feminista?
H – E há dúvidas? Algo contra?
R – Não, imagina! Eu amo o feminismo! - (Ri altamente de maneira debochada)
H – Nós não precisamos de homens “feministas”. Sabemos nos defender sozinhas.
R – E quem disse que quero aqui defender vossas pautas, senhorita feminista? Apenas amo vocês porque no dia a dia eu e meus camaradas nos beneficiamos delas. (Ri mais ainda)
H – Você está louco! Só pode. Nós queremos a independência do machismo, dessa sociedade patriarcal que oprime as mulheres. Nós vos odiamos.
R – (Após rir muito) Louca está você. Vamos, que benefício te trouxeram o feminismo? O que agora você pode senhorita “tudo posso”? (fala de maneira debochada)
H – Antes eramos um objeto do homem, da família patriarcal. Agora somos independentes. Meu corpo, minhas regras.
R – Não, seu corpo, minha mercadoria. É quanto o programa mesmo? (Ri muito)
H – Idiota!
R – Idiota é você, cara senhora, você se gaba de estar liberta da família, de um lar, de não ter um marido que a sustente. Gaba-se da legalização da prostituição? Que maravilha! E quem ganha com isso? Teu pai? Não, eu, que agora posso abusar de você. Aliás, o dono dessa casa de jogos também, afinal, pra ser uma das garotas de luxo daqui há uma pequena porcentagem, não? Conte-me como é o grito de orgulho de sair do lar com um marido para se tornar objeto sexual de qualquer estúpido, bêbado, fedido, mas com muito dinheiro?
H – As coisas não são bem assim... (responde deprimente)
R – Aé? e como são?
H – Nós conquistamos direitos. O aborto, por exemplo..
R – Ah, sim, o aborto! Adoro! Semana passada mesmo fiz minha antiga amante abortar o filho. Obrigado por lutarem pelo direito de homens, como eu, poderem vos usar e após engravidar não nos preocuparmos em assumir. Nossa! Vocês não sabem como nos ajudam nos livrando de criar um filho ou ter que pagar pensão. Ainda mais no meu caso que sou casado, poderia arruinar minha família e manchar meu nome nos negócios. Obrigado! Aliás, vamos, legalizem de vez, fiz em uma clínica clandestina. Legalizem para ficar mais fácil de homens como nós, que algumas chamam de canalhas, termos vocês mais ainda só como objetos sexuais. Aliás, objetos de descarte.
H – Como você pode falar assim de uma maneira tão fria?
R – Como vocês puderam lutar por nossos direitos de safadeza? Ah, obrigado. (silencia) Bom, no mais, você dizendo que sou frio... A mãe de Carina, minha antiga amante, também disse que sou frio. (Diz reflexivo)
H – E posso saber porquê?
R – Talvez... Acredito que seja porque não dei importância quando ela me ligou avisando que Carina havia tomado alguns remédios e estava a beira da morte. Acho que ela não se deu muito bem psicologicamente com o fato de ter abortado e resolveu partir também... Se é que me entende...
H – Você é um monstro!
R – Mas sou cria do vosso movimento, baby.

Richard parecisa implacável, sarcástico em seu discurso. Mesmo com essa mulher às lágrimas com suas palavras, ele não perdoa:

Lutam pelo direito de trabalhar, mas tem que trabalhar mais ainda quando homens como eu não assumimos os filhos. O inimigo vosso é a sociedade patriarcal, o cristianismo, ou suas amiguinhas que vos levaram a ser nossos brinquedinhos? Tiraram você da família, e hoje alegram-se com sua profissão num bordel. Pílulas prevenindo a gravidez, como é a propaganda, abortos, que maravilha mesmo. Vocês, mulheres, realmente podem tudo, mas com esse feminismo, a única coisa que conseguiram foram se tornar em idiotas e escravas de nós, canalhas, que fazemos de vocês coisa nossa. Claro, nem todas. Falo aqui das que se embriagam com os dois cânticos do inferno: a conversa do você é livre, faça o que quiser; e o cântico dos homens como eu. Existem vários homens que são o contrário do que sou, mas acho que o cântico da canalhice prevalece por se casar perfeitamente com o cântico do feminismo.”

Ela chora muito. Mas Richard, irreconhecível, finaliza: vamos, pare de chorar! Não estou te pagando para isso! Viva o feminismo!

Hilary, chorando, pensava em seu coração: não sei se tive motivos para entrar nessa vida, mas hoje eles não faltam para sair. Verdadeiramente reconheço que hoje sou escrava. Sorte que posso mudar minha história daqui para frente. Antes eu era livre e feliz e não sabia. Quero retornar a verdadeira liberdade que ideologia nenhuma, como a feminista, é capaz de me dar.

***

E assim foi a vida de Richard, de abismo em abismo. Mulheres e mais mulheres; álcool, cocaína; jogando e perdendo. Ele queria usufruir da felicidade que o dinheiro podia lhe conceder.

Mônica já não suportava mais a estranheza do marido. Até que ele chega ao ponto de não pagar contas básicas de casa, pois mesmo ganhando muito, estava gastando mais e mais. Mônica decide segui-lo. Encontra-o com outra “mulher do dia”. Foi uma punhalada para ela.

Em casa ela lhe desmascara. Anuncia-lhe que não aceitará de maneira alguma aquela situação. Richard diz “então adeus. Vai embora!” Mas, por amor aos filhos, ela espera. Afinal, mais uma vez Richard chegou fora de si por causa das coisas que consumia.


No outro dia, porém, antes que Mônica percebesse, Richard já havia saído para o trabalho. O velho Artur ao vê-lo chama-lhe imediatamente.

A- Você tá maluco?
R – Fale baixo, por favor (coloca a mão na cabeça sinalizando sua dor de cabeça).
A – É disso que estou falando! Todos estão percebendo sua vida imoral! Olha pra você! Está causando escândalo pra empresa.
R – Olha quem fala...
A – Cale a boca! Você é um nada aqui! Cuido de você como se fosse filho. Mas eu te dei as regras aqui. Não podia dar escândalo. Você recebe muito mais do que um mero assistente. E com que cara me apresento pras pessoas com suas ausências e, pior ainda, com sua aparição embriagado!
R – Ah, deixa de conversa chata, pa-pai, vamos tomar um Wisky.

Dr Atur pega um charuto, acende, dá alguns passos em direção a Richard, e solta uma baforada em sua cara. Sai dali sem dizer nada para Richard, ressacado.

Parece estranho a conduta do velho Artur. Um homem que não apenas era tão imoral quanto Richard, mas quem iniciou-o nessa vida, agora lhe ditando regras. Mas o fato é que Richard era bem conhecido na empresa; de fato este tornara-se quase um filho seu. Era quase o próprio chefe na ausência de Artur. Porém, Richard adorava dinheiro. E muitos dos seus clientes e sócios eram pessoas honestas e que levavam a sério a questão da imagem. Deixar um libertino na frente dos negócios da empresa era o mesmo que queimar dinheiro. E Dr Artur gostava de gastar dinheiro com suas bebidas e demais futilidades, as escondidas, diferente de Richard que agora pouco ligara para o fato de Mônica ter descoberto suas traições. Após aquele aborto parece que ele abriu de vez as portas para a imoralidade.

Richard segue para seu escritório no prédio da empresa. Qual surpresa, ninguém acreditaria! Outra pessoa ocupara seu lugar. “Ei, essa sala é minha, dá licença, faxineiro!” Disse orgulhosamente. Logo aparece um segurança e diz “Não, não é mais. Esse jovem lhe substitui nas suas funções. São ordens do dr Artur.” “Não – respondeu Richard – só pode ser um engano”. O segurança logo chamou um companheiro e ameaçou “Se não sair, seremos obrigados a usar da força!” “Vocês sabem com quem estão falando!?” - Bradou Richard, furioso. Os seguranças pegaram-no a força, arrastaram, e na porta de entrada do prédio jogaram-no, qual lixo a ser levado pelo caminhão. E os seguranças falaram “...com um verme que foi e não é mais merda nenhuma. É com esse que falamos!”.

Estava na sarjeta! Como seria possível isso? Ele, depois de muito tempo, volta o olhar para o Céu, e antes que dirija alguma palavra para Deus, qual relâmpago, lembra-se de quando criança e ia a Missa com sua mãe ouvira as palavras: “derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes”. Talvez se nesse momento decidisse por um clamor de perdão, conquistaria tudo novamente para viver licitamente. Mas, não. Ele não queria ter sido despojado do trono.

Ainda lhe restava um dinheiro. Foi ao botequim, comprou uma bebida. Estava assumindo-se como alcoólatra?

Sem escrúpulos chega em casa: sujo, maltrapilho, bêbado. Era um sujeito de fazer dó. Onde fora parar o orgulho. Mônica se compadece, abraça-o, beija-o (apesar dos apesares) e questiona-o “meu amor, o que aconteceu? Não podes ficar assim, não pega bem pro seu trabalho!” “Trabalho! - responde Richard -que trabalho? Fui chutado daquela joça...” Mesmo que Mônica dissesse que ser daria um jeito, trabalhariam, se reergueriam sem a dependência do velho Artur, Richard estava num estado de depressão profunda.

Um grande homem disse certa vez que não adianta beber para afogar as mágoas, pois estas sabem nadar. Uma pena Richard não ter conhecido esse grande homem, pois poderia ter aprendido tantas coisas e não estar nessa vida. Sem sua fonte de renda que mais parecia loteria, Richard foi vendo seus carros dizerem adeus. Tinha três: um perdeu no jogo, outro vendeu pra quitar dívida da casa – feita também no jogo – e o outro foi Artur que lhe dera, e lhe tomara. A própria casa corria-se o risco de perderem, tamanhas as dívidas que se acumulara. Ele não foi um marido que administrara os dons que tinham, mas torrou tudo. Agora lhe restara a bebida. Sua presença já se tornara insuportável para sua família. Ele mesmo arrumava briga. Ele não se aguentava a si mesmo.

Um dia, muito louco, toma uma importante decisão. Antes que os filhos ou a mulher percebessem, este pega uma pequena sacola com duas ou três peças de roupa, e sai. Sai sem destino. Quem diria! Aquele menino que irritava-se por morar numa casa simples, com a mãe e os irmãos, tornou-se poderoso, mas do nada, porque não foi um bom administrador, perde tudo, até a dignidade, e vai morar nas ruas.

Eis a vida de Richard, orgulhoso e poderoso, agora vive de pedir dinheiro e alimentar o vício pelo álcool e as drogas. Tornou-se uma chaga viva perambulando pelas cidades. Longe de sua família, que o procura, mas sem sucesso.

O que resta para Richard? Será possível que terminará assim a vida dele?

Onde está o teu orgulho
aonde foi parar?
O homem que tinha coisas, nas ruas foi morar
Trocou mulher e filhos
pelas drogas e amigos libertinos
As prostitutas, as drogas,
com dinheiro, tudo isso a sua volta
Mas o que ganhou com tudo isso?

A felicidade? Não. Só o abismo!

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Relações de vida ou morte | O homem que tinha coisas #6

Cinco anos se passaram desde aquela ligação para o Dr Artur, poderoso empresário do ramo imobiliário. Richard foi acolhido pelo magnata, tornando-se seu braço direito. Foi praticamente adotado. Agora ele tinha estabilidade financeira, carro, casa, e – pasme! - casou-se com uma linda jovem.

Tinha agora a vida que sempre quis ter. Bom, na verdade, tinha a vida que a maioria das pessoas quer ter. Tinha tudo sem grande esforço; e quando fazia um esforço a mais, era recompensado com um bom retorno financeiro. Ele era bem comissionado – se é que me entendem.

Mas, embora tivesse a vida dos sonhos, um vazio ainda o corroía. Seu casamento era uma grande farsa. Ao ser questionado pelos novos amigos ricos do porque se casaria, ele dizia sempre “- porque é o rumo lógico das coisas: nascer, crescer, casar com uma mulher.” Na verdade, ele não casou por amor a jovem; casou-se por conselho do velho Artur que, embora fosse divorciado e vivesse de uma maneira imoral, sabia que para o jovem Richard, sua imagem de bom pai de família o ajudariam nos negócios e até futuramente em outras carreiras, como a política. Richard então encontrou sua atual esposa, Mônica, que apaixonada pelo jovem “bom partido” casou-se sem saber que era só uma peça de um jogo no tabuleiro, era só uma consequência natural, segundo Richard, e não um ato de amor.

Muitos agem assim: está todo mundo casando, casar-me-ei também. Mônica não, casou por amor. Um amor cego, é verdade, que não deixou que ela enxergasse a furada que era. Richard, no entanto, casou-se nessa lógica: "tá todo mundo casando, fazendo sua imagem, farei o mesmo".

É, casado, com dinheiro, dois filhos apenas (eles evitam. É algo que deviam estudar: muitos pobres tem vários e vários filhos e são felizes, embora não tenham as coisas mais caras a oferecer aos filhos; já muitos ricos, evitam ter filhos, evitam gastos, tem poucos filhos, e não tem a felicidade que uma senhora nordestina ao parir o 12º filho), mas o oco permanece no coração dele.

Mônica tenta demonstrar amor ao marido, aos filhos, é, no fundo, uma boa mulher. Porém, Richard olha para ela com desprezo. Cada ato de amor, de doçura que sua mulher faça para com ele, o irrita profundamente no mais profundo de sua alma. É então que ele tem a nefasta conclusão no coração: a culpa – pensou Richard – da minha infelicidade é esta mulherzinha chata. Existem tantas, porque a escolhi? Aliás, porque me privo somente a ela?

Pensava assim porque, como agora era um homem de posses e praticamente sucessor do magnata Artur, chovia mulheres ambiciosas ao seu redor. Porém ele sabia dessa ambição e não queria trair sua mulher com tais mulheres ambiciosas.

Um belo dia, após um evento social em que fora obrigado a ir para representar a empresa, Richard avista uma bela jovem. Não me alongarei no relato, porém, o galanteador convence a jovem a sair. Como é óbvio, ele escondeu sua aliança e o fato de ser casado. Após várias saídas, começam um relacionamento.

Richard começou a seguir os passos do velho Atur, e começa a achar que agora é feliz. Porém, sabe que se a coisa vira pública, pode virar um escândalo na empresa, com os acionistas, investidores... É tudo muito oculto.

Você deve se perguntar: porque diabos ele fez isso com sua esposa? Porque casou se não amava? É, entendo seus questionamentos. Mas vocês devem entender que Richard é o homem que tinha coisas, para ele o amor é sinônimo de prazer, de felicidade, de retorno, naquele exato momento. O amor para ele era como um chiclete que só serve pra ser mascado enquanto ainda tem açúcar, após o amargor é jogado no lixo. Está cheio de pessoas assim por aí. Cuidado para não ser uma pobre Mônica sofredora. Aliás, por enquanto não sofre, pois como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente.

Richard passou meses traindo sua esposa com aquela jovem que encontrara num evento social que havia ido a trabalho. E certo dia essa moça, Carina, liga para Richard pedindo um encontro urgente. Richard, que estava em casa com a família fingindo ser um pai prestativo, enrola uma conversa para Mônica não desconfiar, e sai dizendo que tinha negócios a tratar.

No local marcado Richard, nervoso, fala:
R – Você está maluca, Carina? O que aconteceu pra me ligar assim?
C – O que tem te ligar seja que hora for? Estranho esse seu suspense! - Richard voltou a si e lembrou que Carina não sabia que ele era casado.
R – Perdoe-me, meu bem, o que você tem a dizer?
C – Olha, eu não sei se fico feliz, ou não... - Abre um sorriso tímido – eu estou grávida!
Richard faz uma cara de espanto, parece que estão lhe tirando as vísceras e apertando com a mão e brada:
R – É o quê? Não é possível! Não! Não! Não! Você não pode estar grávida. Você está brincando, não é? Fala!
C – Você não está feliz, amor?
R -Fe, fe – gagueja de nervoso – feliz? Por que estaria feliz?
C – Nosso fi..
R – Nosso, não, SEU!
A pobre e iludida menina parece não acreditar na reação de seu amado príncipe encantado. Na verdade eu não contei quem é Carina. É uma menina que mora na periferia, humilde, vem da mesma realidade de Richard. Ela é tão inocente que não apenas não sabia que Richard era casado, mas nem mesmo sabia que ele era o braço direito de um grande empresário. A coitada, iludida, apenas achou que encontrara o príncipe encantado, alguém decente, que casaria com ela e sustentaria. Nem mesmo desconfiava pelos lugares caros, apenas achava que seu namorado tivesse um bom emprego. E agora, se via escorraçada por um crápula que a abandona no momento em que mais precisa. Aliás, numa realidade que não fez só. Afinal, Richard não quer assumir um filho que fez. Ora, Carina é pobre, e agora teria que cuidar de um filho só.
R – Carina – Disse Richard, após um momento de silêncio -, você sempre me achou um homem misterioso, não é? Pois bem, também tenho um segredo a revelar.

A pobre menina ouvia, mas seus olhos... Seus olhos estavam inchados pois só sabia chorar.

R – A verdade é, não me leve a mal... Eu sou casado e pai de dois filhos
C – É o quê, Richard?
R – Isso mesmo, eu sou casado. E esse filho não está nos meus planos. Você quer destruir minha família e meu nome na empresa? Sou o braço direito do dono, se eu manchar a empresa com um escândalo volto pra sarjeta. É isso o que você quer?

A pressão psicológica para a pobre Carina foi grande. O que fazer agora? Richard disse: “Eu não quero esse filho. Terá que abortar!” Carina, no entanto, ainda se desmanchando em lágrimas, fala “mas você assumir! Pagar pensão...” Mas Richard já estava decidido a rejeitar o fruto de sua relação: “Não! E o escândalo quando descobrirem? E se você ao saber que tenho dinheiro me chantagear? Não. Terás que abortar...” A menina, viu-se desamparada. Sem ninguém. Não contou para a família por medo da reação. E com tantas propagandas pró-aborto, ela, apesar do peso na consciência, em meio ao desespero, sede a proposta de Richard, e marcam o dia que finalizariam o fruto daquela relação de mentira. O problema é que o fruto da relação era real, e havia recebido uma sentença de morte mesmo sendo o mais inocente da relação.

Amanhece o dia, o sol nasce, e com ela a hipócrita relação de Richard com Mônica também. Beijinho de bom dia, um falso eu te amo – da parte de Richard – café da manhã com os filhos. Mas naquele dia era importante, seu nervosismo era notório. Mônica lhe questiona o motivo de estar tão nervoso, mas só obteve uma resposta de “negócios importantes para resolver hoje”. Saiu, gelado como sempre para os filhos. Exceto quando estava fechando a porta da casa para sair para suas resoluções, e vê o seu menor, olhos brilhando, com uma bola embaixo do braço. Fita-o... Mas sem coração é duro. Sempre olhou os filhos como algumas coisas que apareceram após o casamento. Gastos, tormentos. Mas como ele estava com dinheiro, dava coisas pra distraí-los e deixá-lo em paz. Foi um pai ausente, frio, estranho. Olha-o, como disse, e sai sem falar uma única palavra.

Ele havia marcado de se encontrar com Carina em frente a uma clínica de aborto clandestina. Ele saiu de casa e deixou seus filhos brincando, e estava indo até onde mataria seu outro filho, para impedi-lo de brincar, de correr, de andar, de falar, de amar de viver...

Richard, sabe-se lá o porquê, decidiu deixar o carro um pouco distante do local. Foi a pé. Colocou seu óculos escuro naquela cara fechada, terno preto, jeito destemido, imponente... Orgulhoso assassino! Sabe quando aquele cara te mete tanto medo, te transmite tanto poder e autoritarismo que você tem até medo de se aproximar? Assim estava Richard.

Mas ele não assustou um garotilho de 8 anos, sujo... Não, muito sujo mesmo! Era um garoto de rua. Estava sujo, descalço, roupa rasgada. Se aproxima de Richard, olha para o chão, mas dirige-se a ele: “Querido, querido! Mê dê uma esmola!” Richard abaixa o óculos levemente com o indicador, olha com desprezo e segue o rumo. O garoto insiste “Querido, querido, me dê uma esmola!” - e, para surpresa do orgulhoso Richard, o garoto abraça-lhe a perna com ternura e amor, como se fora um filho abraçando o pai.

Qual não foi o susto de Richard, que salta para o lado e brada “Você está maluco, moleque!? Seu trombadinha! Quer me assaltar?”

G – Não, meu senhor, apenas quero uma esmola! - disse estendendo a mãozinha direita.
R – Pra quê? Pra fumar crack? Moleque pentelho!
G – Não, meu senhor, pra viver. Dê-me uma esmolinha.. Por favor! - Tem coragem e levanta a cabeça, olhando para o rosto de Richard. Este então percebe olhos azuis bem clarinhos, mostrando um brilho de vida em meio a aparente morte daquele corpo sujo vestido com panos rasgados. Richard fica surpreso, tocado com aqueles olhos do pequeno mendigo que lhe transmite vida, felicidade, um quê de confusão em sua alma que – esquece-se por um instante – está caminhando rumo ao matadouro de crianças.
G – meu senhor, você parece com meu pai.
R – E é? Por quê?
G – Não sei, não o conheci. Pelo que dizem meu pai abandonou minha mãe. E minha mãe... - abaixa a cabeça novamente – morreu a pouco tempo. Só restou eu e meu irmão.
R – É, que vida desgraçada!
G – Não! Não blasfeme assim! Isso é uma ofensa a Deus, autor da vida. Pelo menos vivo, e quantos não podem viver. Não é mesmo? Nenhum sofrimento é maior do que o de não poder viver. Se sinto dor, há quem foi impedido de senti-la pois foi impedido de viver. Quem, papai, digo, meu senhor, tem o direito de tirar uma vida? Matar dentro ou fora da barriga? Quem? Quem?

Richard fica admirado, de repente aquele moleque sujo de olhos azuis leva um diálogo, que ele não queria ter iniciado, e leva-o para o aborto. Prática esta que estava indo fazer. Esse moleque era humano mesmo, ou um anjo, ou mesmo um diabo para o perturbar? Estava Richard confuso em meio a uma cativante criança que ativa os maiores níveis de seu remorso. Mas, como seu orgulho é grande, consegue apenas dizer “você delira”.

G – Vamos, meu senhor, dê-me uma esmola!
R – Tudo bem, se vai me deixar em paz... - Tira 10 reais, a maior esmola que dera nos últimos anos. Pra ser sincero, não vou encobri-lo, essa foi a primeira.
G – Não, meu senhor, não quero dinheiro. Quero uma esmola.
R – Que diabo! Tome aqui a esmola. Pegue o dinheiro.
G – Não estou te pedindo dinheiro, meu senhor – olha dentro dos olhos de Richard – estou te pedindo uma esmola. Estou lhe pedindo o que você tem e não quer me dar. O que você já me deu e quer tirar. (Silêncio) Dá-me uma esmola, meu senhor?
R – To, tome! (Disse com voz embargada) Tome logo (suspira).
G – Não, meu senhor, dá-me uma esmola. Dá-me o que o que você tem e não quer me dar, o que já me deu e quer tirar.

Richard sai correndo dali, confuso, tropeçando nas pessoas. Aquele menino é um enviado de Deus ou do demônio? Parece não ser humano.

Sabe-se lá como, em meio aos tropeços, ele chega, atrasado em frente a clínica abortista. Lá estava Carina, triste, depressiva, no aguardo de seu antigo amado.

C – E aí, pensei que tinha desistido. (Sorri) Desistiu? - perguntou esperançosa.
R – Sim. Digo, não. Espera... Desisti de que?
C – Do abo..
R – Sim! Cale-se! Não fale as alturas, pode haver problemas. - Richard, não tirava da sua mente aqueles olhos azuis lhe pedindo uma esmola. Mas porque aquele moleque recusou receber os 10 reais? O que Richard tinha lhe dado e queria tirar? Um grande mistério assombra-o.

Na mente de Carina a pressão psicológica não lhe tirou o peso na consciência de fazer um aborto. Ela vinha de família cristã, mas nem podia dizer que era por isso necessariamente, afinal, ela não praticara a religião, inclusive vivendo contrário as praticas da religião. Por exemplo, se tivesse vivido a castidade não teria acontecido esse emblório todo. Mas a maternidade é algo natural da mulher, a consciência pesa tanto para os crentes como para os ateus. Ela sabe que o que está fazendo é errado, mas não tem em quem se apoiar. O único sustento que tinha era o namorado que a levava para dançar, jantar, era sua felicidade; e agora a leva para uma clínica de aborto para finalizar o fruto dessa relação. Logo ele que ela tanto amava, logo ele que até juras de amor fez.

Richard, como num sopro na sua consciência toma um ar de coragem, de ser homem, ser aquele homem de outrora, e assumir sua responsabilidade. Mas logo, tomado por uma acídia que parecia o inferno inteiro a vim sobre ele, toma-o de assalto, e teme o futuro, o nome, o dinheiro que pode perder, a família que já tinha construída (Embora fosse fachada). E decide-se:

R – Você sabe o que fazer. Vamos! - Disse friamente.

Entraram na clínica, fizeram uma ficha. Carina vai pra uma sala de cirurgia, e Richard para o caixa. Assim são muitos, são homens apenas de pagar, mas não de amar. Após pagar o procedimento, ele decide-se ir até a sala onde ocorreria o assassinato de um bebê. Era uma clínica disfarçada. Tinha equipamentos de ultrassom e tudo. O médico, sarcasticamente pergunta: “querem ouvir o coração? Se quiser fala, oportunidade única!” Isso só serviu para aumentar a angústia e o choro de Carina: “Coração, doutor, já tem coração?”. O médico era o mais monstruoso e verdadeiro possível! “O coração do bebê começa a bater com 20 dias. Rapidamente já está todo formado. Mas, calma, não é uma vida, não é?” Carina sabia que era uma vida, e depois dessa informação mais peso tem. A vontade dela é sair dali correndo e cuidar do seu filho só. Mas a perna pesa. Deseja, pelo menos, acordar desse pesadelo horrível. Mas Richard, atônito, mesmo olhando o ultrassom, fecha a cara, coloca o óculos escuro e diz “faça o que tem que ser feito. E logo!” Carina olha, sem sucesso, para Richard, que despreza-a, e sem reação, e tomada sabe-se lá porque, não tem reação. Só chora compulsivamente. E, para tristeza do mundo: mais um inocente fora executado pela curetagem.

Richard e Carina saem, esta com dores. Ele tira o óculos, olha para ela e diz:
R-Até
C- Até mais.
R – Não. Até nunca. Tem um carro te esperando. Te deixará na sua casa. Finja que não existo. Finja que fui abortado com o teu filho.

E assim terminou essa infame relação: cada um para um lado, e uma criança no saco de lixo.

E Carina, que fez o aborto por pressão psicológica, agora não tinha apoio nenhum. Estava só com um vazio.

Richard volta a pé até onde deixara seu carro. Qual surpresa, ao caminhar pelas ruas, avista uma roda humana. Uma multidão em volta de algo. Algo que deixa Richard curioso. Ele se aproxima e, qual sua surpresa! Trata-se do garoto de olhos azuis caído no chão, morto, cheio de sangue ao seu redor... Membros soltos. Que horror! Os olhos azuis tornaram-se pretos tenebrosos. E na mão uma pequena placa que segurara: Papai, não negue-me a esmola de poder viver!