quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Relações de vida ou morte | O homem que tinha coisas #6

Cinco anos se passaram desde aquela ligação para o Dr Artur, poderoso empresário do ramo imobiliário. Richard foi acolhido pelo magnata, tornando-se seu braço direito. Foi praticamente adotado. Agora ele tinha estabilidade financeira, carro, casa, e – pasme! - casou-se com uma linda jovem.

Tinha agora a vida que sempre quis ter. Bom, na verdade, tinha a vida que a maioria das pessoas quer ter. Tinha tudo sem grande esforço; e quando fazia um esforço a mais, era recompensado com um bom retorno financeiro. Ele era bem comissionado – se é que me entendem.

Mas, embora tivesse a vida dos sonhos, um vazio ainda o corroía. Seu casamento era uma grande farsa. Ao ser questionado pelos novos amigos ricos do porque se casaria, ele dizia sempre “- porque é o rumo lógico das coisas: nascer, crescer, casar com uma mulher.” Na verdade, ele não casou por amor a jovem; casou-se por conselho do velho Artur que, embora fosse divorciado e vivesse de uma maneira imoral, sabia que para o jovem Richard, sua imagem de bom pai de família o ajudariam nos negócios e até futuramente em outras carreiras, como a política. Richard então encontrou sua atual esposa, Mônica, que apaixonada pelo jovem “bom partido” casou-se sem saber que era só uma peça de um jogo no tabuleiro, era só uma consequência natural, segundo Richard, e não um ato de amor.

Muitos agem assim: está todo mundo casando, casar-me-ei também. Mônica não, casou por amor. Um amor cego, é verdade, que não deixou que ela enxergasse a furada que era. Richard, no entanto, casou-se nessa lógica: "tá todo mundo casando, fazendo sua imagem, farei o mesmo".

É, casado, com dinheiro, dois filhos apenas (eles evitam. É algo que deviam estudar: muitos pobres tem vários e vários filhos e são felizes, embora não tenham as coisas mais caras a oferecer aos filhos; já muitos ricos, evitam ter filhos, evitam gastos, tem poucos filhos, e não tem a felicidade que uma senhora nordestina ao parir o 12º filho), mas o oco permanece no coração dele.

Mônica tenta demonstrar amor ao marido, aos filhos, é, no fundo, uma boa mulher. Porém, Richard olha para ela com desprezo. Cada ato de amor, de doçura que sua mulher faça para com ele, o irrita profundamente no mais profundo de sua alma. É então que ele tem a nefasta conclusão no coração: a culpa – pensou Richard – da minha infelicidade é esta mulherzinha chata. Existem tantas, porque a escolhi? Aliás, porque me privo somente a ela?

Pensava assim porque, como agora era um homem de posses e praticamente sucessor do magnata Artur, chovia mulheres ambiciosas ao seu redor. Porém ele sabia dessa ambição e não queria trair sua mulher com tais mulheres ambiciosas.

Um belo dia, após um evento social em que fora obrigado a ir para representar a empresa, Richard avista uma bela jovem. Não me alongarei no relato, porém, o galanteador convence a jovem a sair. Como é óbvio, ele escondeu sua aliança e o fato de ser casado. Após várias saídas, começam um relacionamento.

Richard começou a seguir os passos do velho Atur, e começa a achar que agora é feliz. Porém, sabe que se a coisa vira pública, pode virar um escândalo na empresa, com os acionistas, investidores... É tudo muito oculto.

Você deve se perguntar: porque diabos ele fez isso com sua esposa? Porque casou se não amava? É, entendo seus questionamentos. Mas vocês devem entender que Richard é o homem que tinha coisas, para ele o amor é sinônimo de prazer, de felicidade, de retorno, naquele exato momento. O amor para ele era como um chiclete que só serve pra ser mascado enquanto ainda tem açúcar, após o amargor é jogado no lixo. Está cheio de pessoas assim por aí. Cuidado para não ser uma pobre Mônica sofredora. Aliás, por enquanto não sofre, pois como dizem: o que os olhos não veem, o coração não sente.

Richard passou meses traindo sua esposa com aquela jovem que encontrara num evento social que havia ido a trabalho. E certo dia essa moça, Carina, liga para Richard pedindo um encontro urgente. Richard, que estava em casa com a família fingindo ser um pai prestativo, enrola uma conversa para Mônica não desconfiar, e sai dizendo que tinha negócios a tratar.

No local marcado Richard, nervoso, fala:
R – Você está maluca, Carina? O que aconteceu pra me ligar assim?
C – O que tem te ligar seja que hora for? Estranho esse seu suspense! - Richard voltou a si e lembrou que Carina não sabia que ele era casado.
R – Perdoe-me, meu bem, o que você tem a dizer?
C – Olha, eu não sei se fico feliz, ou não... - Abre um sorriso tímido – eu estou grávida!
Richard faz uma cara de espanto, parece que estão lhe tirando as vísceras e apertando com a mão e brada:
R – É o quê? Não é possível! Não! Não! Não! Você não pode estar grávida. Você está brincando, não é? Fala!
C – Você não está feliz, amor?
R -Fe, fe – gagueja de nervoso – feliz? Por que estaria feliz?
C – Nosso fi..
R – Nosso, não, SEU!
A pobre e iludida menina parece não acreditar na reação de seu amado príncipe encantado. Na verdade eu não contei quem é Carina. É uma menina que mora na periferia, humilde, vem da mesma realidade de Richard. Ela é tão inocente que não apenas não sabia que Richard era casado, mas nem mesmo sabia que ele era o braço direito de um grande empresário. A coitada, iludida, apenas achou que encontrara o príncipe encantado, alguém decente, que casaria com ela e sustentaria. Nem mesmo desconfiava pelos lugares caros, apenas achava que seu namorado tivesse um bom emprego. E agora, se via escorraçada por um crápula que a abandona no momento em que mais precisa. Aliás, numa realidade que não fez só. Afinal, Richard não quer assumir um filho que fez. Ora, Carina é pobre, e agora teria que cuidar de um filho só.
R – Carina – Disse Richard, após um momento de silêncio -, você sempre me achou um homem misterioso, não é? Pois bem, também tenho um segredo a revelar.

A pobre menina ouvia, mas seus olhos... Seus olhos estavam inchados pois só sabia chorar.

R – A verdade é, não me leve a mal... Eu sou casado e pai de dois filhos
C – É o quê, Richard?
R – Isso mesmo, eu sou casado. E esse filho não está nos meus planos. Você quer destruir minha família e meu nome na empresa? Sou o braço direito do dono, se eu manchar a empresa com um escândalo volto pra sarjeta. É isso o que você quer?

A pressão psicológica para a pobre Carina foi grande. O que fazer agora? Richard disse: “Eu não quero esse filho. Terá que abortar!” Carina, no entanto, ainda se desmanchando em lágrimas, fala “mas você assumir! Pagar pensão...” Mas Richard já estava decidido a rejeitar o fruto de sua relação: “Não! E o escândalo quando descobrirem? E se você ao saber que tenho dinheiro me chantagear? Não. Terás que abortar...” A menina, viu-se desamparada. Sem ninguém. Não contou para a família por medo da reação. E com tantas propagandas pró-aborto, ela, apesar do peso na consciência, em meio ao desespero, sede a proposta de Richard, e marcam o dia que finalizariam o fruto daquela relação de mentira. O problema é que o fruto da relação era real, e havia recebido uma sentença de morte mesmo sendo o mais inocente da relação.

Amanhece o dia, o sol nasce, e com ela a hipócrita relação de Richard com Mônica também. Beijinho de bom dia, um falso eu te amo – da parte de Richard – café da manhã com os filhos. Mas naquele dia era importante, seu nervosismo era notório. Mônica lhe questiona o motivo de estar tão nervoso, mas só obteve uma resposta de “negócios importantes para resolver hoje”. Saiu, gelado como sempre para os filhos. Exceto quando estava fechando a porta da casa para sair para suas resoluções, e vê o seu menor, olhos brilhando, com uma bola embaixo do braço. Fita-o... Mas sem coração é duro. Sempre olhou os filhos como algumas coisas que apareceram após o casamento. Gastos, tormentos. Mas como ele estava com dinheiro, dava coisas pra distraí-los e deixá-lo em paz. Foi um pai ausente, frio, estranho. Olha-o, como disse, e sai sem falar uma única palavra.

Ele havia marcado de se encontrar com Carina em frente a uma clínica de aborto clandestina. Ele saiu de casa e deixou seus filhos brincando, e estava indo até onde mataria seu outro filho, para impedi-lo de brincar, de correr, de andar, de falar, de amar de viver...

Richard, sabe-se lá o porquê, decidiu deixar o carro um pouco distante do local. Foi a pé. Colocou seu óculos escuro naquela cara fechada, terno preto, jeito destemido, imponente... Orgulhoso assassino! Sabe quando aquele cara te mete tanto medo, te transmite tanto poder e autoritarismo que você tem até medo de se aproximar? Assim estava Richard.

Mas ele não assustou um garotilho de 8 anos, sujo... Não, muito sujo mesmo! Era um garoto de rua. Estava sujo, descalço, roupa rasgada. Se aproxima de Richard, olha para o chão, mas dirige-se a ele: “Querido, querido! Mê dê uma esmola!” Richard abaixa o óculos levemente com o indicador, olha com desprezo e segue o rumo. O garoto insiste “Querido, querido, me dê uma esmola!” - e, para surpresa do orgulhoso Richard, o garoto abraça-lhe a perna com ternura e amor, como se fora um filho abraçando o pai.

Qual não foi o susto de Richard, que salta para o lado e brada “Você está maluco, moleque!? Seu trombadinha! Quer me assaltar?”

G – Não, meu senhor, apenas quero uma esmola! - disse estendendo a mãozinha direita.
R – Pra quê? Pra fumar crack? Moleque pentelho!
G – Não, meu senhor, pra viver. Dê-me uma esmolinha.. Por favor! - Tem coragem e levanta a cabeça, olhando para o rosto de Richard. Este então percebe olhos azuis bem clarinhos, mostrando um brilho de vida em meio a aparente morte daquele corpo sujo vestido com panos rasgados. Richard fica surpreso, tocado com aqueles olhos do pequeno mendigo que lhe transmite vida, felicidade, um quê de confusão em sua alma que – esquece-se por um instante – está caminhando rumo ao matadouro de crianças.
G – meu senhor, você parece com meu pai.
R – E é? Por quê?
G – Não sei, não o conheci. Pelo que dizem meu pai abandonou minha mãe. E minha mãe... - abaixa a cabeça novamente – morreu a pouco tempo. Só restou eu e meu irmão.
R – É, que vida desgraçada!
G – Não! Não blasfeme assim! Isso é uma ofensa a Deus, autor da vida. Pelo menos vivo, e quantos não podem viver. Não é mesmo? Nenhum sofrimento é maior do que o de não poder viver. Se sinto dor, há quem foi impedido de senti-la pois foi impedido de viver. Quem, papai, digo, meu senhor, tem o direito de tirar uma vida? Matar dentro ou fora da barriga? Quem? Quem?

Richard fica admirado, de repente aquele moleque sujo de olhos azuis leva um diálogo, que ele não queria ter iniciado, e leva-o para o aborto. Prática esta que estava indo fazer. Esse moleque era humano mesmo, ou um anjo, ou mesmo um diabo para o perturbar? Estava Richard confuso em meio a uma cativante criança que ativa os maiores níveis de seu remorso. Mas, como seu orgulho é grande, consegue apenas dizer “você delira”.

G – Vamos, meu senhor, dê-me uma esmola!
R – Tudo bem, se vai me deixar em paz... - Tira 10 reais, a maior esmola que dera nos últimos anos. Pra ser sincero, não vou encobri-lo, essa foi a primeira.
G – Não, meu senhor, não quero dinheiro. Quero uma esmola.
R – Que diabo! Tome aqui a esmola. Pegue o dinheiro.
G – Não estou te pedindo dinheiro, meu senhor – olha dentro dos olhos de Richard – estou te pedindo uma esmola. Estou lhe pedindo o que você tem e não quer me dar. O que você já me deu e quer tirar. (Silêncio) Dá-me uma esmola, meu senhor?
R – To, tome! (Disse com voz embargada) Tome logo (suspira).
G – Não, meu senhor, dá-me uma esmola. Dá-me o que o que você tem e não quer me dar, o que já me deu e quer tirar.

Richard sai correndo dali, confuso, tropeçando nas pessoas. Aquele menino é um enviado de Deus ou do demônio? Parece não ser humano.

Sabe-se lá como, em meio aos tropeços, ele chega, atrasado em frente a clínica abortista. Lá estava Carina, triste, depressiva, no aguardo de seu antigo amado.

C – E aí, pensei que tinha desistido. (Sorri) Desistiu? - perguntou esperançosa.
R – Sim. Digo, não. Espera... Desisti de que?
C – Do abo..
R – Sim! Cale-se! Não fale as alturas, pode haver problemas. - Richard, não tirava da sua mente aqueles olhos azuis lhe pedindo uma esmola. Mas porque aquele moleque recusou receber os 10 reais? O que Richard tinha lhe dado e queria tirar? Um grande mistério assombra-o.

Na mente de Carina a pressão psicológica não lhe tirou o peso na consciência de fazer um aborto. Ela vinha de família cristã, mas nem podia dizer que era por isso necessariamente, afinal, ela não praticara a religião, inclusive vivendo contrário as praticas da religião. Por exemplo, se tivesse vivido a castidade não teria acontecido esse emblório todo. Mas a maternidade é algo natural da mulher, a consciência pesa tanto para os crentes como para os ateus. Ela sabe que o que está fazendo é errado, mas não tem em quem se apoiar. O único sustento que tinha era o namorado que a levava para dançar, jantar, era sua felicidade; e agora a leva para uma clínica de aborto para finalizar o fruto dessa relação. Logo ele que ela tanto amava, logo ele que até juras de amor fez.

Richard, como num sopro na sua consciência toma um ar de coragem, de ser homem, ser aquele homem de outrora, e assumir sua responsabilidade. Mas logo, tomado por uma acídia que parecia o inferno inteiro a vim sobre ele, toma-o de assalto, e teme o futuro, o nome, o dinheiro que pode perder, a família que já tinha construída (Embora fosse fachada). E decide-se:

R – Você sabe o que fazer. Vamos! - Disse friamente.

Entraram na clínica, fizeram uma ficha. Carina vai pra uma sala de cirurgia, e Richard para o caixa. Assim são muitos, são homens apenas de pagar, mas não de amar. Após pagar o procedimento, ele decide-se ir até a sala onde ocorreria o assassinato de um bebê. Era uma clínica disfarçada. Tinha equipamentos de ultrassom e tudo. O médico, sarcasticamente pergunta: “querem ouvir o coração? Se quiser fala, oportunidade única!” Isso só serviu para aumentar a angústia e o choro de Carina: “Coração, doutor, já tem coração?”. O médico era o mais monstruoso e verdadeiro possível! “O coração do bebê começa a bater com 20 dias. Rapidamente já está todo formado. Mas, calma, não é uma vida, não é?” Carina sabia que era uma vida, e depois dessa informação mais peso tem. A vontade dela é sair dali correndo e cuidar do seu filho só. Mas a perna pesa. Deseja, pelo menos, acordar desse pesadelo horrível. Mas Richard, atônito, mesmo olhando o ultrassom, fecha a cara, coloca o óculos escuro e diz “faça o que tem que ser feito. E logo!” Carina olha, sem sucesso, para Richard, que despreza-a, e sem reação, e tomada sabe-se lá porque, não tem reação. Só chora compulsivamente. E, para tristeza do mundo: mais um inocente fora executado pela curetagem.

Richard e Carina saem, esta com dores. Ele tira o óculos, olha para ela e diz:
R-Até
C- Até mais.
R – Não. Até nunca. Tem um carro te esperando. Te deixará na sua casa. Finja que não existo. Finja que fui abortado com o teu filho.

E assim terminou essa infame relação: cada um para um lado, e uma criança no saco de lixo.

E Carina, que fez o aborto por pressão psicológica, agora não tinha apoio nenhum. Estava só com um vazio.

Richard volta a pé até onde deixara seu carro. Qual surpresa, ao caminhar pelas ruas, avista uma roda humana. Uma multidão em volta de algo. Algo que deixa Richard curioso. Ele se aproxima e, qual sua surpresa! Trata-se do garoto de olhos azuis caído no chão, morto, cheio de sangue ao seu redor... Membros soltos. Que horror! Os olhos azuis tornaram-se pretos tenebrosos. E na mão uma pequena placa que segurara: Papai, não negue-me a esmola de poder viver!

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